Depois de um período de diminuição provocado pela consolidação das avançadíssimas tecnologias de captação de imagens digitais, a ideia de filmar em película aos poucos ressurge de forma crescente. Os rolos de Super 8, 16mm e 35mm já voltaram a rodar nos chassis em um novo movimento que veio para ficar tanto na produção audiovisual comercial quanto no cinema experimentalista. No Brasil, já é possível encontrar serviços de aluguel de câmeras analógicas e importação de filmes, além de profissionais que podem orientar todos os passos dos processos de revelação e telecine, realizados principalmente no exterior.
“Chegamos ao ponto de construir softwares para produzir imagens digitais, mas que tenham a aparência fiel à película”, reflete Walter Carvalho, consagrado como um dos principais diretores de fotografia do Brasil, que escreveu um artigo sobre o tema especialmente para a Íris (a íntegra do texto está no final desta página).
“Com as novas tecnologias eu não conduzo, sou conduzido. Se por um lado atendemos a demanda no conteúdo e na distribuição com uma rapidez estonteante, por outro o nosso ofício de fotógrafo perdeu o sentido épico”, compara Walter, que em 2021 celebra 50 anos de cinematografia e fotografou clássicos como “Sargento Getúlio” (1983), “Central do Brasil” (1998) e “Lavoura Arcaica” (2001). Um de seus trabalhos mais bonitos é “Terra Estrangeira” (1995), filmado com 16mm em Preto & Branco.
“Quando se olha uma ‘boa imagem’ construída pelas novas tecnologias, quase sempre vem a expressão: parece película. A fotografia antes acontecia dentro da câmera, na caixa preta lacrada e depois no escuro durante o processamento. Agora ela é construída fora dela”, diferencia Walter, que já abraçou completamente as câmeras digitais.
Fotogramas dos filmes “Xarpi”, “Desmond” e “Ciclos” (videoclipe de Marechal), dirigidos por Breno Moreira
“Eu filmo todos os meus filmes pessoais em película”, atesta o diretor e fotógrafo Breno Moreira. Ele é uma prova de que esse sonho é possível, mas admite que conquistou essa possibilidade graças a alguns privilégios: “Tive a sorte de estar em Nova York, onde mora a minha irmã, quando um amigo me convidou para testar uma câmera SR2 antiga, com 700 metros de negativos para usarmos. Fomos ao Queens e fizemos o curta ‘108th St’, um documentário sobre dançarinos de rua.” Desde então, não parou mais e tem conseguido usar filmes de 16mm regularmente para filmar documentários, curtas, videoclipes e comerciais de marcas como Puma, Nike e C&A.
Em 2021, Breno lançará seu primeiro longa-metragem, “Jambalaia”, documentário sobre a situação dos moradores de um conjunto de prédios que foi demolido no Rio de Janeiro, filmado em 16mm. Para ele, “a maioria das pessoas ainda resiste muito, mas pode ser economicamente viável e rápido filmar em película se você planejar tudo detalhadamente. Isso me obriga a estar sempre mais concentrado e a pensar mais no que será filmado. A mecânica é outra, é algo que afeta o comportamento de toda a equipe. Todos vivem aquele momento e no final querem tirar fotos ao lado da câmera.”
Na intimidade, Breno carrega sempre uma Canon Scoopic e costuma filmar o cotidiano da filha, hábito que deu origem a um novo documentário pessoal, ainda não lançado. “Filmar em película é um deleite, mas entendo como uma ferramenta que não é somente estética”, assume Breno, que prefere não fundamentar a escolha com argumentos mais técnicos: “Fui a uma palestra de Vittorio Storaro e ele disse que considera ultrapassados os fotógrafos que insistem na película, como se andassem para trás.”
Imagem do clipe “Ciclos” (direção de fotografia de JP Garcia) e Breno Moreira uma câmera Aaton.
No cinema norte-americano, entre os principais lançamentos dos últimos anos, há uma boa parcela de longas-metragens filmados em película. Steven Spielberg, por exemplo, usou filmes de 35mm para rodar sua nova versão do musical “West Side Story”, com fotografia de Janusz Kaminski e lançamento previsto para 2021. A superprodução “Mulher Maravilha 1984”, lançada nos cinemas pela DC Comics no fim de 2020, foi filmada com câmeras Arri, Panavision e IMAX de 35mm e 65mm, com direção da cineasta Patty Jenkins e cinematografia de Matthew Jensen. “007: Sem Tempo para Morrer” (2021), novo episódio da franquia do agente James Bond, foi captado em 35mm e 65mm pelo DOP Linus Sandgren.
“O Som do Silêncio” foi rodado em 35mm.
Um caso bastante emblemático é “Era uma Vez em Hollywood” (2019), de Quentin Tarantino, que tem cenas filmadas com quatro bitolas diferentes. Robert Richardson, diretor de fotografia, usou filmes Kodak de 35mm colorido, 35mm Preto & Branco, 16mm e Super 8. O cineasta nunca aderiu ao formato digital, assim como Christopher Nolan, que também sempre filma em película e rodou “Tenet” (2020) em negativos de 65mm com câmeras Panavision, Arri e IMAX, comandadas pelo fotógrafo Hoyte van Hoytema.
Entre os indicados ao Oscar de 2021, “O Som do Silêncio”, “Estados Unidos Vs Billie Holiday” e “Destacamento Blood” foram filmados ou possuem sequências filmadas em película, além de “Tenet”. Em 2020, entre os indicados a Melhor Filme e Melhor Fotografia, 52% foram filmados em película.
“Los Conductos”, “A Metamorfose dos Pássaros”
Paulo Menezes/ A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos/ Primeira Idade, Portugal, 2020
No Festival de Berlim em 2020, quatro dos premiados foram rodados em 16mm: o colombiano “Los Conductos”, o português “A Metamorfose dos Pássaros”, o sérvio “Otac” e o norte-americano “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre”, além do brasileiro “Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitán (também com cenas em Super 8). Na Berlinale de 2021, a mesma bitola foi usada em “What Do We See When We Look at the Sky”, da Geórgia, e “Esquí”, coprodução Brasil-Argentina, ambos vencedores de prêmios da Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema).
A série “Small Axe”, de Steve McQueen, usou filmes 35mm e 16mm revelados na Cinelab London.
A película também continua presente em produções televisivas e filmes lançados em plataformas de streaming. É o caso, por exemplo, das séries “Westworld”, “Succession”, ambas da HBO, e “Small Axe”, da BBC (disponível na Globoplay), e dos longas-metragens “O Diabo de Cada Dia” (35mm), “Malcolm & Marie” (filmando com negativo P&B de 35mm) e “Destacamento Blood” (16mm e digital), lançados pelo Netflix em 2020 e 2021. Alguns adotam 16mm para cenas de época, ambientadas no passado. Outros consideram que a granulação gera um efeito expressionista. A textura de grãos também pode ativar referências e memórias no subcosciente do espectador.
Antonio Campos filma “O Diabo de Cada Dia” em 35mm.
O site oficial da Kodak tem uma página sempre atualizada com os novos filmes, séries, videoclipes e comerciais filmados em película:
https://www.kodak.com/en/motion/page/shot-on-film
Pelo menos duas empresas brasileiras possuem câmeras disponíveis para aluguel, de diferentes marcas e modelos, prontas para rodar. “Entre 2018 e 2019, antes da pandemia, o consumo de negativos em produções brasileiras chegou a atingir uma média de uma lata por semana”, avalia Nestor Grun, da locadora MAC. Segundo ele, esse número era 50 vezes menor há uma década, mas houve um repentino ressurgimento do interesse pela película nos últimos quatro anos. Na percepção dele, logo antes da pandemia, a produção de videoclipes consolidava-se como a maior consumidora de película no Brasil, principalmente em 16mm e Super 8, enquanto o mercado publicitário também adotava bastante o celulóide de 35mm.
A MAC possui a maior quantidade de câmeras para aluguel (quatro de 35mm e três de 16mm) em São Paulo, mas também é possível encontrar algumas unidades de 35mm na JKL. Marcas como Arri, Panavision e Aaton pararam de fabricar esse tipo de equipamento há mais de dez anos, mas os últimos modelos lançados (e outros mais antigos) ainda funcionam perfeitamente se houver uma boa manutenção, por tempo indeterminado.
Os fabricantes perceberam que o reaproveitamento das usadas já é suficiente para atender à demanda de quem ainda opta pela filmagem analógica em plena era digital, até porque algumas peças específicas ainda são fabricadas para reposição.
Para adquirir negativos, é necessário importar do exterior. A importação pode ser feita de maneira independente, em compras pela internet ou presencialmente em viagens, mas também é possível solicitar os filmes por meio de empresas como a Runner, importadora oficial autorizada da Kodak, que faz todo o processo formalmente de maneira oficial e pode oferecer preços menores por trabalhar com um volume maior de demanda em condições especiais de cobrança de impostos.
A revelação deve ser feita preferencialmente em empresas especializadas, que oferecem o material digitalizado em arquivos de 2K, 4K, 6K ou 8K, produzidos a partir de avançadas tecnologias de scan. No Brasil, os melhores equipamentos de digitalização estão na Cinecolor Digital, em São Paulo, que faz escaneamento e telecine de 35mm e 16mm, mas não revela os filmes. No exterior, há grandes laboratórios ativos principalmente em cidades como Los Angeles, Nova York e Londres. Ainda é possível também encontrar laboratórios brasileiros informais de 16mm e Super 8, em esquema de coletivos artísticos, a partir de experimentos de filmagem de projeções, sem a mesma estabilidade (e velocidade do serviço) oferecida pelos técnicos profissionais com equipamentos mais modernos.
Câmeras usadas em oficina de Super 8 oferecida pelo lab.irinto.lab
Sediado em São Paulo, o lab.irinto.lab, ligado ao coletivo Mundo em Foco, oferece serviços de revelação e digitalização de 16mm e Super 8, além de vender rolos de películas com processamento próprio, como os “Fungi Films”, que descrevem como “aproximadamente 10km de filmes vencidos de cinema, armazenados em condições duvidosas que contribuíram para fungos e efeitos incontroláveis em cada rolo”. Eles também oferecem cursos, participam de festivais (especialmente o Super OFF e o 1666) e fizeram a revelação de “Espera” (2018), longa-metragem do diretor Cao Guimarães, e das cenas em película de “Ana. Sem Título” (2020), de Lúcia Murat.
O maranhaense Marcos Ponts adotou a bitola de 16mmm no longa-metragem “Chorando se Foi”.
No Maranhão, o cineasta Marcos Ponts decidiu filmar seu primeiro longa-metragem em película. Produzido em 2018, “Chorando se Foi” encontra-se em fase de finalização, com direção de fotografia assinada por Roman Lechapelier, fotógrafo francês baseado em São Luís na época. O cineasta garante que filmar em 16mm foi mais barato do que utilizar algumas das novas câmeras digitais, mas precisou recorrer a um laboratório na Romênia para concretizar o projeto.
“As pessoas riam da minha cara e falavam que eu era louco, que seria impossível filmar em película com as verbas que tínhamos, mas sou movido por desafios e superamos todos os riscos. ‘Chorando se Foi’ retrata a vida de de um projecionista. Rolos de película estão presentes em várias cenas. Tentei filmar em digital, mas não gostava dos resultados”, lembra Ponts: “Se eu pudesse resumir a experiência em duas palavras, seriam tesão e tensão. Era muito empolgante ouvir o barulhinho da câmera, mas não podíamos rodar várias tomadas e ficávamos aliviados no final.”
“A câmera foi uma Arri SR2 com filme de 16mm colorido”, detalha o diretor. Segundo ele, “na época, alugar um kit completo digital da Arri Alexa Mini durante seis semanas seria mais caro do que usar película. Hoje em dia essa comparação seria diferente por causa da alta do dólar. Por meio de Roman, conheci Rodrigo Ruiz, espanhol que trabalhou na Kodak e depois comprou um laboratório na Romênia. Ele foi um anjo, abraçou meu projeto e facilitou tudo para revelar.”
Ivo Lopes Araújo opera uma Bolex Rex 3 em uma cena do filme “Tatuagem”.
O diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo está em processo de pós-produção do longa-metragem “Todas as Vidas de Telma”, filmado predominantemente em 16mm com uma câmera Bolex. Ele assina a direção junto com Antonio Luiz Mendes, consagrado fotógrafo de clássicos como “Das Tripas Coração” (1982) e “Ópera do Malandro” (1986), que foi vítima da covid-19 aos 75 anos em dezembro de 2020. Eles decidiram filmar em película as imagens subjetivas em primeira pessoa da protagonista, a fotopintora cearense Telma Saraiva, que dedicou a vida à pintura sobre retratos fotográficos analógicos. Os negativos foram comprados no lab.irinto.lab e a revelação será feita em Nova York.
“Eu acredito nessa alquimia da prata, que tem um mistério e é quase uma bruxaria”, observa Ivo sobre a processo de filmagem e revelação. “Filmar em filme te possibilita enxergar o mundo opticamente, através da lente, e não através de visores com processamento digital que emitem luzes eletrônicas. Você realmente está olhando para as pessoas e espaços. A relação do corpo com a câmera também é outra, pois o equipamento tem outra respiração e não esquenta como as máquinas digitais”, compara Ivo, que admite ainda não ter tido a oportunidade de experimentar os novos visores ópticos analógicos desenvolvidos para as câmeras digitais Arri a partir de jogos de espelhos.
Anteriormente, Ivo teve a oportunidade de filmar em película longas-metragens como “Tatuagem” (2013) e “Ausência” (2014) e curtas como “Sem Coração” (2014) e “Solon” (2016). “A valorização do take é muito maior. Funciona muito bem com diretores que fazem poucos takes, mas fica contraditório para quem gosta de filmar muito material”, pondera.
Formado pelos artistas brasileiros Gustavo Jahn e Melissa Dulius, o coletivo Distruktur, sediado em Berlim desde 2006, já lançou dois longas-metragens filmados em 16mm nos últimos cinco anos, além de vários curtas. O mais recente é o longa “Oráculo”, que participou da Mostra de Cinema de Tiradentes em 2021. Eles começaram os experimentos com película quando ainda moravam no Brasil, mas na Alemanha encontraram um acesso mais direto a materiais, equipamentos e laboratórios.
Melissa Dulius e Gustavo Jahn nos filmes “No Coração do Viajante”, “Muito Romântico” e “Oráculo”.
“Eu comecei filmando em película. Tive câmeras de vídeo muito jovem, que usava como diário, mas quando encontrei a turma com quem iria fazer cinema, tinha que ser em película. Era assim em Porto Alegre em 1999 com o coletivo Sendero, formado na faculdade de biblioteconomia e comunicação da UFRGS”, reconstitui Melissa, que também desenvolve experimentos com projeções, objetos, instalações e materiais impressos. “Em Berlim, nos juntamos ao grupo fundador do LaborBerlin, laboratório-cooperativa de pós-produção de película, autogerido pelo grupo. Desde março de 2020, trabalho no escritório da Andec-Filmtechnik, referência em revelação de película cinematográfica no mundo todo.”
Nos últimos anos, o Distruktur fez duas turnês pelo Brasil para elaborar projetos e oferecer oficinas que têm, entre os intuitos, formar pequenos núcleos, em diferentes cidades, de pessoas interessadas em filmar com película, como se plantassem sementes. Nas últimas duas décadas, eles já organizaram 20 cursos em diferentes lugares do mundo.
As oficinas oferecidas por Luciana Mazeto e Vinícius Lopes envolvem
filmagem e revelação.
A dupla de cineastas Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, da produtora Pátio Vazio, do Rio Grande do Sul, tem dirigido uma série de filmes em película, exibidos em grandes festivais, como Gamado e Roterdã. O mais recente é o documentário “Os Olhos na Mata e o Gosto na Água”, média-metragem selecionado em 2020 para o prestigiado festival Visions du Réel, na Suíça. Em 2019, na mostra Cine Esquema Novo, em Porto Alegre, eles fizeram a curadoria de um programa de filmes rodados em película produzidos nos laboratórios LaborBerlin (Alemanha) e Worm.Filmwerkplaats (Holanda). No mesmo evento, ofereceram uma oficina de técnicas manuais e experimentais para filmagem, revelação e copiagem de 16mm, com materiais como negativo Preto & Branco e cafenol, uma solução ecológica que gera imagens de alto contraste a partir de ingredientes encontrados em supermercados, além de experimentos com cianotipia em emulsão artesanal.
“Nós tivemos a oportunidade de filmar nossos primeiros curtas na faculdade de cinema em 16mm, e foram experiências que nos instigaram bastante. Eu tive a possibilidade de editar esses filmes na Moviola da universidade, manuseando o material que tínhamos captado fisicamente”, resgata Luciana. Para ela, “o processo do laboratório, as incertezas e as possibilidades estéticas que o filme analógico propicia só podem ser atingidas usando esse formato. A experiência de filmar, revelar e experimentar com as imagens utilizando o filme é tão gratificante quanto vasta”. Na visão de Vinícius, “existe algo de único, de singular nesse processo todo. Mesmo que as possibilidades de experimentação estética do filme sejam extremamente amplas, é a experiência pessoal que se modifica mais profundamente”.
Imagens do videoclipe da banda britânica Black Market Karma filmadas pelo pernambucano Ivan Cordeiro em Super 8.
Ivan Cordeiro, pernambucano que mora em Los Angeles, é um grande ativista contemporâneo do Super 8 e participa de redes internacionais de troca de informações sobre a bitola. Ele é parceiro do laboratório californiano Pro8mm e costuma fazer a ponte para cineastas brasileiros que precisam de revelação de negativos, digitalização ou restauração de filmes antigos. “A razão número 1 para o ressurgimento do interesse pela película é o avanço das novas tecnologias de scan. O advento do escaneamento em 4k, por exemplo, trouxe uma nova possibilidade de beleza da imagem que valoriza as interseções luminosas e os grãos”, observa. A qualidade, a praticidade e a velocidade das novas máquinas disponíveis é um grande atrativo para as novas gerações, na visão dele.
Os novos scanners de telecine impulsionaram o ressurgimento do interesse de filmar em película, mas a recente alta do dólar é um empecilho para os brasileiros, constata Ivan. “Um cartucho de três minutos de Super 8 custa 150 Dólares, o que atualmente equivale a mais de R$ 750”, calcula.
Para uso caseiro, Ivan possui uma Canon 1014, que às vezes precisa de restauro por causa de peças de plástico do motor, do eixo e da engrenagem. Ele alerta que os técnicos especializados em consertar câmeras estão morrendo aos poucos, então é importantíssimo que as pessoas aprendam elas mesmas a consertar.
“A película tem um poder cativante e funciona como um atestado de autenticidade, algo importante para diferenciar um filme em meio a tanta informação visual que recebemos hoje em dia”, acredita Ivan, que é um dos curadores do festival internacional de cinema Curta 8, realizado há 17 anos em Curitiba. Recentemente, ele dirigiu o videoclipe da música “Andrea’s Drum”, da banda britânica Black Market Karma, lançado em janeiro de 2021 pelo selo flower Power Records, filmado em Super 8. Na pandemia, desenvolveu o projeto “A Cameraman in Lockdown” e produziu curtas que podem ser vistos em seus canais do Vimeo e Youtube, alimentados mensalmente. Em 2020, restaurou e digitalizou em 4K cinco rolos de imagens filmadas pela RFSA nas ferrovias de São Paulo e Rio de Janeiro em 1971.
Lúcifer Kabra sempre adota o Super 8 em filmes experimentalistas como o videoclipe “O Consolo das Antas”.
O artista visual e músico Lúcifer Kabra prepara-se para lançar o longa-metragem “Da Luz ao Vale”, da Kino-Cobra filmes, filmado parcialmente em Super 8, formato que ele costuma usar em todos os seus filmes. “Uso o super 8 para poder construir imagens que possam ressignificar a relação da temporalidade do registro. Partindo do pressuposto que toda imagem é memória, a película fortalece essa percepção”, reflete.
Para Lúcifer Kabra, “o processo fílmico é totalmente diferente quando você sabe que tem apenas 3 minutos para contar algo. O gatilho da câmera toma uma proporção mágica de queima do filme, de um acontecimento único e que você só poderá checar após uma longa jornada de revelação e telecinagem. As possibilidades de erro também podem gerar resultados únicos”. Depois de “Da Luz ao Vale”, ele lançará um outro filme, ainda em desenvolvimento, totalmente filmado em Super 8.
Em entrevista cedida para o site norte-americano IndieWire em 2020, Steve Bellamy, presidente da divisão de Cinema e Entretenimento da Kodak, afirmou que tem sido cada vez mais crescente o volume de fabricação de negativos de todas as bitolas, do 65mm ao Super 8, inclusive filmes Preto & Branco.
Uma questão que também pode pesar no orçamento é o transporte dos negativos até os laboratórios no exterior. “Não recomendo enviar pelos Correios”, alerta Ivan Cordeiro, já que um extravio seria um dano realmente irreparável. Com ele, infelizmente, já aconteceu. Breno Moreira costuma já deixar tudo planejado junto com alguém da equipe, especialmente com diretores de fotografia que moram na Inglaterra ou nos Estados Unidos. É possível receber as imagens digitalizadas em menos de uma semana, pois os laboratórios são rápidos, com capacidade de trabalhar com vários rolos simultaneamente. “Quando cheguei no FotoKem com minhas poucas latas nas mãos, eles estavam trabalhando simultaneamente com ‘Dunkirk’, que tinha milhares de metros de filmes em processo naquele momento”, lembra Breno. O longa de Christopher Nolan consumiu 975 rolos de 65mm.
Até 2010, filmar em película no Brasil ainda era muito comum, tanto no cinema quanto na publicidade, em minisséries e nos videoclipes. Rapidamente, as câmeras digitais avançaram sobre quase tudo e as salas de cinema aposentaram os projetores antigos. Aos poucos, entretanto, diversos fotógrafos já retomam a filmagem analógica, sejam interessados em resultados mais orgânicos, por opção estética ou por acreditarem nas infinita elasticidade do celulóide, que até agora ainda não pôde ser considerado ultrapassado ou menos nítido do que as mais arrojadas tecnologias eletrônicas. Alguns defendem que não se deve comparar, pois são linguagens realmente diferentes.
Sinto-me como Umberto Eco que se dizia fascinado pelo erro.
É com o erro que aprendo.
Quando eu filmava com película, por mais que procurasse conhecer ou pudesse dominar a tecnologia da época, havia um fascínio pelo erro no sentido de que estava sempre em busca. A imprecisão era baseada na certeza.
Trabalhava com uma caixa preta e com o escuro do processamento necessário às películas no laboratório. Nunca vou esquecer os momentos vividos nas cabines dos laboratórios para assistir os copiões.
Adrenalina e emoção.
Não tinha medo do erro, me preocupava com o acerto e sempre fui muito cético em relação ao certo.
O processo era muito rico e quando encontrava-me pleno de certezas tudo perdia a graça. O encanto da descoberta sempre funcionou como estimulo para meu trabalho.
Com as novas tecnologias tudo pode ser previsto ou construído em detalhes com o mínimo de risco. Tudo é instantâneo.
É possível tecnicamente saber como algo vai ficar antes de pronto, um paradoxo. Se já sei o que vai acontecer como resultado, porque posso prever tudo antes com segurança, o encanto se desfaz. Um perigo por perto faz bem ao percurso e sobretudo ao resultado.
Filme não se faz com planejamento, filme se faz com cinema.
Entretanto, é fascinante o que nos oferecem as novas tecnologias, apesar de serem apenas ferramentas. Na linguagem do cinema não existem padrões e nem manuais de controle. Ela está viva, é uma invenção contida na criação, aquilo que pode transcender.
Para realizar “Entreatos”, de João Moreira Salles, por exemplo, usei uma câmera digital por opção pessoal. Poderia ter feito com película, mas certamente seria outro filme. “Entreatos” me exigia uma velocidade e uma mobilidade que o equipamento tradicional do cinema não me permitiria.
A fotografia antes acontecia dentro da câmera, na caixa preta lacrada e depois no escuro durante o processamento. Agora ela é construída fora dela. A imagem virou uma equação que pode resolver todos, ou quase todos, os problemas. Isso é fantástico.
Mas ao mesmo tempo o processo digital foi desenvolvido para fazer o que já se fazia antes. Quando se olha uma “boa imagem” construída pelas novas tecnologias, quase sempre vem a expressão: parece película.
Chegamos ao ponto de construir softwares para produzir imagens digitais, mas que tenham a aparência fiel à película. É no mínimo curioso.
Não podemos ficar alheios às mudanças. Hoje não se suportaria mais a espera do processo laboratorial das películas porque o mundo tem pressa.
Num átimo aperta-se uma tecla e a imagem se faz, e bela. Mas é preciso reflexão sobre o que se faz com a imagem hoje no planeta.
Existe um claro esgotamento do campo simbólico. O excesso e a proliferação descontrolada nos meios de comunicação nos fazem transbordar de banalidades e imagens despotencializadas.
Transcrevo aqui as palavras de Ítalo Calvino que resumem muito bem essa questão:
“Em nossa memória se depositam por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhante a um deposito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo.”
Uma das características mais interessantes do cinema é que fazemos para ver como que fica. Com as novas tecnologias eu não conduzo, sou conduzido.
Se por um lado atendemos a demanda no conteúdo e na distribuição com uma rapidez estonteante, por outro o fotógrafo perdeu o sentido épico do nosso oficio.
As coisas mais importantes para quem produz imagens são aquelas dispostas diante da câmera e sobretudo o que pretendemos com ela.
Mas é preciso também permitir o desejo incontido do olho. Porque a câmera, seja ela qual for, é um instrumento que nos ensina a ver sem câmera.
O que importa é a vadiagem do olhar.
Walter Carvalho
“Lavoura Arcaica”, “Terra Estrangeira” e “Central do Brasil” estão entre os mais emblemáticos trabalhos cinematográficos de Walter Carvalho filmados em película.
Dependências e equipamentos dos laboratórios Pro8mm, Cinecolor, Cinelab London, Fotokem e Metro.
Colaboraram: Andre Punk Paoliello, Felipe Fininho e Nestor Grun.
Fotos: Victor Jucá, Lula Carvalho, Glen Wilson e Kieron McCarron.
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