SÉRIE / CANAL BRASIL

HIT PARADE

Por Wilssa Esser

“Hit Parade” conta a história do Simão (Tulio Starling), um cantor idealista que, após levar um golpe do produtor Missiê Jack (Robert Frank), abre uma gravadora para enfrentar seu rival. Em pouco tempo, uma guerra entre eles domina a música pop dos anos 80. A série apresenta um universo que apela ao exagero dos elementos estéticos característicos da época, com um excesso nas cores e dos brilhos que configura um olhar atual, pop, onde as escolhas da fotografia dialogam diretamente com o tom de comicidade e drama dos episódios.

A cor e a textura são os elementos determinantes da imagem de “Hit Parade”. Optamos por um tratamento de cores saturadas, principalmente nas cores primárias, que remetem a uma estética de vídeo da década. Na série, vemos um programa de TV onde se apresentam os artistas de maior sucesso e estamos sempre no trânsito entre os bastidores e a cena de apresentação.

Com ajuda de filtros, conseguimos trazer realce dos brilhos e ao mesmo tempo desconstruir a demanda de extrema resolução que as imagens atuais têm. Utilizamos algumas tonalidades de cor que fazem referência à época, mas que hoje em dia não são consideradas de “bom gosto”, como se elas já tivessem sido descartadas pela produção de imagens contemporâneas.

Eu já conhecia Marcelo Caetano informalmente porque frequentamos circuitos similares de cinema. Ele conheceu meu trabalho com o filme “Temporada”, de André Novais, que foi minha primeira experiência como diretora de fotografia em um longa-metragem de ficção. Nosso primeiro trabalho foi um documentário filmado em uma escola pública no contexto do projeto “Brito sem Homofobia”, que é um evento anual LGBTQIAP+ que seria censurado pelas políticas do governo atual no Brasil. Foram quatro diárias nas quais tivemos uma boa dinâmica. André Barcinski, criador e roteirista de “Hit Parade”, o convidou para dirigir a série e a partir daí fui chamada para fotografar.

Quando se trata dos anos 80, o caminho mais comum é o de reproduzir um imaginário norte-americano, mas a estética da TV e do cinema no Brasil naquela década é bem diferente do que vemos nessas representações mais óbvias. Nossa pesquisa de imagens foi extensa, passamos a ver fotos familiares, programas de TV da época, cinema marginal e pornochanchada. Conversamos bastante sobre imagens já existentes que o Marcelo trazia, daí extraímos diversos elementos plásticos e simbólicos que viriam a constituir uma identidade visual de um Brasil pop dos anos 80.

Tivemos muita liberdade nas escolhas. Revisitamos também filmes estrangeiros. O filme “Querelle”, de Fassbinder, foi uma referência importante pelo uso das cores e pelo glow nas altas. As luzes, a forma de filmar e o cenário do auditório foram muito inspirados no musical indiano Disco Dancer (1982), de Babbar Subhash.

Combinamos tudo isso com uma construção cinematográfica que fosse sofisticada e, ao mesmo tempo, que fugisse de uma representação higienizada da época. Nos permitimos trabalhar com o “erro”, simulando a pouca latitude no range dinâmico, que é uma característica das câmeras de vídeo da época. Trabalhamos highlights estourados, imagens granuladas, chromas com recorte evidente, movimentos de zoom “toscos”. Usamos, por exemplo, uma gelatina verde que hoje, em uma produção clássica, jamais seria usada. Era algo que poderia ser considerado de mau gosto, mas que se adequava à nossa proposta, um tipo de paródia estética.

A decupagem acontecia na hora da filmagem, dando liberdade aos atores para criar em função dessa primeira relação do corpo com o cenário. Tentamos sempre pensar nas cenas fugindo do clássico plano/contraplano.

As cenas de maior planejamento e coreografia foram as de plano sequência com Steadicam, operada pelo Thiago Giovani. O plano-sequência de abertura, por exemplo, é importante por causa da apresentação dos bastidores. A série oferece um ponto de vista sobre a indústria fonográfica, com alguns personagens principais que são produtores e trabalham nos estúdios de gravação. Esse plano inicial faz uma síntese de tudo, pois começa nos camarins e entra no cenário do programa de TV, no auditório (o espaço de maior explosão estética em termos de cores, luzes e brilho), e conduzimos o espectador progressivamente em um único plano para esse universo.

Marcelo Caetano teve certa resistência de trabalhar com pouca profundidade de campo. A série foi toda filmada com f/4 e f/5.6 porque ele queria maior profundidade. A mise en scène contribuía muito para isso, com seus diferentes planos dramáticos. O foco poderia estar na frente e na metade do espaço também. É algo que funciona quando você consegue construir tudo a partir da atuação dos atores. Isso foi importante para sair da tendência do look com exagero de desfoque. Hoje em dia, existe um tipo de fetiche ou uma falsa noção de que a pouca profundidade de campo ou o desfoque faz uma imagem ser mais “cinematográfica”.

Em relação aos enquadramentos, sempre levamos em conta que estávamos enquadrando para uma tela de TV, mas com a consciência de que a série também poderia ser assistida em um visor de telefone celular. Nesse sentido, foi diferente do que faríamos no cinema, sem grandes planos gerais, por exemplo.

Algumas cenas não tinham muita movimentação dos atores, mas conseguimos imprimir certa fluidez com o uso de trilhos. Os tempos, assim, não parecem muito parados e os espectadores não perdem o pulso do momento.

CÂMERA, LENTES
E MUITOS FILTROS

Trabalhamos com a câmera Sony FS7, por questões de desenho de produção. Ela é econômica e ao mesmo tempo tem uma ergonomia de corpo que permite, por exemplo, operar a câmera no ombro sem muitos rigs (acessórios) de adaptação. Adotei as lentes ZEISS T1.3 Super Speed, que eu gosto muito, pois buscávamos uma imagem que não fosse muito nítida. Elas têm uma textura vintage e um bokeh interessante. Mesmo assim, ainda não era suficiente. Devido ao look da câmera ainda tínhamos uma textura contemporânea predominante, então passamos à etapa dos testes.

Eu sempre trabalho muito com filtros e tento pensar na fotografia a partir da textura que a história pede. Antes de pensar na luz e nos planos, a primeira coisa que penso é na textura que o roteiro me provoca. No caso do “Hit Parade”, os personagens circulam por muitos ambientes noturnos, era uma época onde era permitido fumar em todos os lugares, então a fumaça e o realce dos excessos tinham que estar impressos na imagem.

Fiz uma grande pesquisa de filtros. Geralmente, a gente faz uma pesquisa na tentativa de embelecer. Nesse caso, era o contrário. Precisávamos causar certos “estragos” na imagem, trazer alguma sujeira, tanto na luz como na textura do próprio vidro. Fiz alguns testes de filtro que analisei junto com Marcelo para entendermos a medida justa nas densidades, estando cientes de que a premissa era exagerar.

Ao longo de toda a série, usamos o filtro Smoque 1. Ele é um filtro de atmosfera, traz um glow nas altas e suaviza a transição dos pretos para as médias. Ele traz um aspecto lavado que achamos bem interessante. Além do Smoque 1, somamos a ele 1/4 de Pro Mist para um glow maior nos highlights. Usamos sempre no desenho de luz um contra duro nos personagens, que é uma característica da cinematografia da época.

Para alguns cenários, como o auditório, a boate e os bares, queríamos trazer mais brilhos, então somamos o filtro Star que cria raios múltiplos a partir de um ponto de luz único. Nessas cenas, tivemos que tirar o Promist, já que a junção dos 3 filtros produzia problemas de refração na imagem, trazendo duplicação dos contornos nas altas luzes.

Todos esses efeitos de flare das lâmpadas dos cenários, que formam estrelas e figuras geométricas, foram filmados e não simulados na pós. Eu sou bastante purista em relação a isso. Prefiro fazer da forma artesanal na câmera.

Houve também uma grande conversa com a diretora de arte, Maíra Mesquita, uma parceira com quem trabalhei muito desde os testes na pré-produção. Ela enviou uma série de tecidos para ver a resposta deles na câmera em diferentes situações de luz. A partir daí definimos alguns fundos que reagiriam melhor com a luz, refletindo mais brilhos, inclusive em situações de subexposição. Esse entendimento da textura dos filtros entre ambos os departamentos foi muito importante para o desenho da arte, a escolha de figurinos e os elementos que compõem os cenários.

LUZES

A série foi um grande desafio em relação à equipe. Entre elétrica e maquinária, eu tinha apenas três pessoas no total. Era bem complicado porque as cenas tinham 360 graus de possibilidades. Marcelo gosta de decupar no momento de filmar, de acordo com o movimento dos atores pelos espaços. Eu tinha que montar uma estrutura de 360 graus que fosse aérea para permitir a livre movimentação do elenco. Na câmera, eram três pessoas também, dois assistentes e uma logger.

Trabalhei muito com mesa de luz igual às de teatro. Os equipamentos de iluminação eram muito básicos por causa do desenho de produção. Era uma base de refletores Arri e Fresnel, Kino Flo e HMI. Não tínhamos a possibilidade de usar as estruturas de LEDs atuais que são mais leves e controladas por iPad. Ao mesmo tempo, isso não era contraditório em relação à proposta estética. Montamos uma estrutura aérea com barracudas e ajustamos as potências na mesa de luz dimerizada.

Muitos dos espaços eram lugares de trabalho e escritórios, porém trabalhamos muito a claridade ao longo da série, marcando uma diferença com os locais de apresentação dos artistas, que geralmente eram boates e cabarés com jogos de luzes e identidades visuais particulares.

Os estúdios de gravação são espaços totalmente fechados, atemporais. Os personagens entram e passam tanto tempo lá dentro que não sabemos que horas são. Ficam o dia inteiro bebendo, cheirando e criando. Esquecem se é dia ou noite. Trabalhamos com luzes mais pontuais e atmosferas mais densas, principalmente dentro da cabine. O filme “Nashville” (1975), de Robert Altman, foi uma referência para o desenho de luz e para estudar possíveis jogos de reflexos com o vidro do aquário.

Criamos diferenças entre as imagens dos artistas. Alguns tinham um desenho estético mais definido. Outros chegavam pela primeira vez e eram testados, então a iluminação do estúdio se transformava para uma luz mais chapada e alta, pois aquilo era uma espécie de audição.

No caso do auditório onde acontece o programa de TV do Lobinho (Odilon Esteves), levamos luzes a mais e aproveitamos refletores antigos do próprio estúdio onde filmamos, em Belo Horizonte. Trabalhamos, portanto, com algumas luzes da própria época retratada. Foi o único espaço onde fizemos pré-light, com equipe de elétrica adicional, já que era nosso maior cenário.

Os espaços geralmente iam se transformando com os personagens, assim como a própria Sensacional Discos. No começo da série, a sede da gravadora é a casa de Silvana (Docimar Moreyra), que é uma mulher alcoólatra que vive com as cortinas fechadas, uma pessoa que se incomoda com a luz do Sol. Então, mesmo de dia, a sua casa é iluminada por abajures. Quando decidem abrir a gravadora, o espaço se transforma no escritório e a luz solar invade. No escritório da Sensacional, trabalhei bastante com uma luz dura, que é algo que me remete aos anos 80, marcando as tramas das persianas nas paredes.

Messiê Jack é dono de uma gravadora de música e depois passa a ser diretor artístico da Rede Platina. O primeiro escritório dele tinha uma luz mais suja, com lâmpadas florescentes emuladas com Kino Flo, mais parecido com o que seria um escritório institucional. Quando ele ascende de cargo e vira diretor artístico da emissora de TV Platina, passa a trabalhar em um ambiente com painéis de vidro translúcidos, que usamos como fonte de luz principal, preenchidos com 1.2k rebatidos que produziam uma luz mais suave, sóbria e fria.

 

A mansão do Lobinho é uma casa de uma pessoa rica, um lugar de pouco contraste, onde a luz do dia está presente nos espaços devido às grandes janelas panorâmicas. Trabalhamos com uma estrutura de refletores 1.2k, rebatidos para compensar a relação interna/externa, e um 4k, alugado para essas diárias, que faria o highlight de contra-luz que está sempre presente como unidade na série, tanto nas diurnas como nas noturnas.

Com Bill (Ramon Brant), que é um artista punk, a referência era a Alemanha dos anos 80 e filmes de Fassbinder. O personagem mora com a família em uma casa antiga, gótica, com texturas mofadas, então a luz é mais esverdeada. O quarto dele é diferente, todo com janelas fechadas, mesmo durante o dia, com mais contraste e densidade, que refletem o processo depressivo vivido pelo personagem.

CORES

Definimos as cores das luzes de cada cenário segundo o ambiente. Na boate de Gonçalo, onde Simão canta, uma espécie de caverna de baixo nível, trabalhamos um clima de cabaré, com luzes predominantemente vermelhas. Aproveitamos também os espelhos da locação para criar um jogo de profundidade na cena.

O programa de TV é o ambiente mais pop, onde nos permitimos explorar tudo. É um espaço de cores primárias, que é uma coisa muito televisiva. Assim, ressaltamos as tonalidades de azuis, vermelhos e amarelos na correção de cor. O jogo com luzes era feito a partir da estrutura do próprio cenário. A equipe de arte colocou um painel de pequenas lâmpadas e pequenos espelhos pendurados por fio de nylon que eram iluminados e, quando giravam, traziam um jogo de movimento que se fazia mais evidente com o filtro Star.

Há pontuações de cor apenas em alguns personagens específicos. Para as cenas com Índigo (Gabriel Afonso), por exemplo, trouxemos azul por causa do nome dele. Mudávamos também as combinações de cores do auditório em função da personalidade do artista que se apresentava. Trazíamos identidade a partir das cores das luzes. Trabalhamos com vermelho para Frank Fabiano, por se tratar de um cantor romântico. A clave de luz variava de acordo com o tipo de música, se era romântico, rock, pop ou indie.

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Um colaborador importante foi o Alexandre Cristófaro, colorista parceiro com quem trabalho há vários anos. Ele acompanhou o processo desde os testes na pré-produção. Criamos um LUT para monitorar no set o visual mais próximo do que seria nossa imagem final, com as cores mais saturadas e as peles com um tom amarelado. Após a filmagem, na correção de cor, tomamos um caminho diferente, baseado em fotografias tiradas com negativo Kodak Ektachrome, que o Marcelo tinha feito durante a filmagem. Esse negativo apresentava uma adição de magenta nas peles, que incorporamos ao nosso tratamento, trazendo mais separação entre os personagens e as cores dos cenários.

RECORTES, EFEITOS
E COMPOSIÇÕES DIGITAIS

Tudo foi filmado com a mesma câmera, inclusive os videoclipes e imagens dos programas de TV. Chegamos a discutir sobre usar uma outra câmera para esses lugares, mas achamos melhor manter uma unidade e explorar outros elementos visuais para diferenciar.

Para o chroma key, fizemos recortes propositalmente toscos, buscando algo parecido com os recursos de como era feito na época. Quanto mais visível fosse o recorte, melhor, ao contrário do que se busca hoje em dia. As cores vieram mais do trabalho de composição criado nos cenários em motion design. O estúdio do chroma key não era grande. Filmamos os atores na proporção normal e, em algumas imagens, o tamanho deles foi alterado na pós, como quando surge uma galáxia ao fundo no videoclipe infantil.

Marcelo Caetano queria muito que a série tivesse uma cena com uma máquina de bolhas de sabão. É um efeito que reflete as luzes pelo ar, com um movimento que não dá para controlar. Isso contribuiu para a personagem interpretada por Nash Laila, que vira uma cantora infantil durante a gravidez. Já o fogo no estúdio, quando Bill incendeia uma guitarra no programa de TV no ar, é falso, propositalmente bastante falso, feito em 3D. Apenas simulamos a luz das chamas sobre os personagens.

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UMA
BELO HORIZONTE
ARQUITETÔNICA

Foi bastante importante filmar em Belo Horizonte. Foi um plus para a série. Lá existe um senso de preservação arquitetônica e cultural que outras cidades não têm. Em cidades como São Paulo, por exemplo, são escassos os lugares que estejam iguais a como eles eram nos Anos 80. Se existem, ao redor já é muito contemporâneo, de concreto cinza. Em BH, realmente há essa preservação e conservação de prédios antigos. Os cenários da cidade eram o que precisávamos.

Foi um prazer poder filmar de novo em Belo Horizonte. A série conta com um elenco excepcional, majoritariamente mineiro. Voltar para BH permitiu que eu trabalhasse de novo com a equipe de fotografia do filme “Temporada” e é graças a essas pessoas que foi possível chegar no resultado de imagem que tivemos.

LISTA DE REFLETORES:

(1x) 575W HMI
(1x) 200W HMI
(1x) ARRI SkyPanel S30
(2x) LEDMais Flo 120
(4x) LEDMais Flo 60
(4x) ARRI Fresnel 300W
(4x) ARRI Fresnel 150W
(4x) ARRI Fresnel 650W
(2x) ARRI Fresnel 1KW
(1x) LEDMais Painel 30×30
(1x) Fresnel 2KW

LISTA DE GELATINAS:

LEE Filters Gels
058 – Lavander
115 – Peacock Blue
138 – Medium Blue
102 – Light Amber
124 – Dark Green
354 – Special Steel Blue
182 – Light Red
142 – Pale Violet

MINI BIO

https://www.wilssaesser.com/

Formada em direção de fotografia pela Escuela Internacional de Cine y Televisión (Cuba), Wilssa Esser é integrante e cofundadora do Coletivo de Mulheres e Pessoas Transgênero do Departamento de Fotografia do Cinema Brasileiro (DAFB). Nascida na Venezuela, reside no Brasil desde 2014. Recebeu o Troféu Candango de Melhor Fotografia de Longa-Metragem no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro por “Temporada” (2018), dirigido por André Novais, também ganhador do prêmio de Melhor Filme da Mostra Competitiva. Entre seus últimos trabalhos de cinematografia estão os curtas “República” (2020), “Menarca” (2020), “Quebramar” (2019), “Cachorro” (2017), “Filme-Catástrofe” (2017) e o longa-metragem “Mascarados” (2020).

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