No começo da pandemia, fui convidada por Jennie Myers, CEO da agência americana Against, para participar de um projeto de filmes realizados remotamente por mulheres ao redor do mundo. Ela fez o contato comigo através de uma mensagem pelo Vimeo, onde viu meus trabalhos e gostou. Era um projeto menor. A pedido dela, produzi imagens da minha própria casa, com minha filha e minha esposa. Fiz uma coisa meio laje, no rooftop do meu apartamento. Ficou legal pra caramba. O creative director escolheu outra diretora de fotografia, mas ficamos amigas. Gostaram muito de nós. Em julho de 2020, Jennie me mandou um e-mail com o convite para fazer um filme maior para a Saalt, uma empresa de copinhos e outros produtos sustentáveis de cuidados menstruais.

Eu e a diretora Zoe Guglielmoni, que é minha esposa, desenhamos um tratamento (uma proposta visual a partir do roteiro) e foi aprovado. Tivemos muita liberdade, uma coisa que não é normal no meio publicitário. Foi uma relação muito legal de confiança e harmonia com Cherie Hoeger, fundadora da Saalt. Ela é metade argentina e metade americana, faz capoeira e fala português. Terminamos uma reunião tocando berimbau e cantando. É um filme publicitário com um conteúdo no qual eu acredito. Cherie desenvolveu essa empresa inspirada por suas filhas, cinco meninas que se tornariam mulheres, pensando em como abordar o assunto da menstruação com mais naturalidade e sem acanhamento.

A ideia era fazer uma coisa naturalista. As personagens são mulheres do nosso próprio círculo de amizades e conhecimentos: Aisha, Dandara, Flora, Amanda e Guta. Elas não costumam trabalhar como atrizes profissionais, mas achamos que se adequariam bem à proposta do filme. A maioria da equipe era formada por mulheres. Foi muito gratificante ter participado disso. Quando apresentamos o filme para Cherie e o marido, que é sócio dela, os dois choraram. É legal abordar essa questão da menstruação sem ter vergonha. O produto era uma linha de calcinhas menstruais. Na cena com Dandara, fizemos chover com um sol incrível entrando. É como se ela estivesse em casa à vontade. Fizemos um plano da calcinha por trás, bem de perto e a câmera subindo, mas sem ficar vulgar. Flora é bailarina e aparece pulando sobre uma cadeira, dançando em casa, sem se incomodar por estar menstruada. Guta toma banho e todos líquidos misturam-se ali. É uma reconexão com nós mesmas.

Filmamos tudo em dois dias. Recebemos o convite em julho e filmamos no final de setembro. O filme foi lançado no fim de dezembro. Uma das locações era um sítio da diretora de produção Sandra Othon, no interior de São Paulo. As imagens com Dandara e Flora foram feitas em uma casa no Morumbi, com uma vista para São Paulo, uma skyline linda. Estava nublado e a cidade ficava cinza, mas achei isso bom, pois chovia dentro do quarto cheio de plantas. Se fosse um sol grande, eu teria mais dificuldade para controlar e direcionar a imagem.

Optamos pela ARRI ALEXA Mini, um jogo de lentes antigas ZEISS Super Speed e filtro de difusão Glimmerglass, que eu adoro. A ideia era sair dessa coisa super clean e trazer um pouco de grãos, prisma e texturas. Eram liberdades imagéticas que não teríamos em um filme mais careta, mas ainda assim estamos vendendo um produto. A publicidade finalmente está cada vez mais aberta à diversidade, até por percepções mercadológicas.

Para fazer a imagem da água, coloquei um espelhão dentro de um lago bem raso. A câmera estava no Mōvi em cima de um tripé. Operei no Mimic. No primeiro take, estava nublado e não ficou tão bonito. Aí o céu abriu, ficou azul com algumas nuvens e filmamos outra vez, com uma pequena cobertura para a luz não ficar muito a pino. Para refazer, tínhamos que esperar um pouquinho para a água ficar parada novamente.

Na dança de Aisha com o pano, a luz ali é o Sol de Deus, a coisa mais linda. Testamos três lugares diferentes no mesmo gramado. Quando ela está em plano fechado, usei um pano branco e um pano preto. Eu a cobri e cobri também o chão, para bloquear o verde refletido pela grama.

Quando eu uso refletores, tento aproveitá-los a favor de uma luz que eu tenha ali. Com Dandara, além da janela que aparece em quadro, havia outra janela ao lado, onde coloquei uma girafa com um refletor HMI grande que incidia direto nela e também para imprimir a água que chovia dentro do quarto. Sempre tento iluminar de fora para dentro. Também uso muito pano preto para ajudar o que já existe. Gosto de usar sempre fumaça e haze, não para marcar algum facho de luz, mas para dar uma poeira no ar, uma textura aprazível para os olhos.

Um set mais vazio proporciona mais envolvimento e tranquilidade, mas o Mōvi é um objeto grande, um bambolê gigante com a câmera e um colete que me deixa com duas antenas penduradas. É necessário um exercício de empatia para perceber o outro, observar e saber esperar o tempo das atrizes, da diretora e da direção de arte. É importantíssimo manter o lugar de observador e também saber o momento de intervir de alguma forma, perceber quando lhe dão uma abertura. Precisa ter essa calma da observação e dar o tempo do outro, respeitar a natureza de cada um.

Inicialmente, usaríamos uma Steadicam, mas o operador testou positivo para Covid um dia antes das filmagens. Decidi então eu mesma operar a câmera com um Freefly Mōvi, que aluguei com Anderson Brasil, nosso próprio foquista. Também usei bastante o MIMIC, ficando mais afastada.

Filmamos Flora na sala da casa, com um desenho de luz mais direcionado e um highlight na parede. Ela recebia uma luz mais suave, começava a dançar e eu a seguia meio solta. Havia um storyboard, com tudo decupado, mas a gente dançava com as personagens. Com Dandara, em um quarto no primeiro andar, fizemos uma coisa mais hard, linda. Elas se entregavam aos poucos. No banheiro, o espaço era muito apertado. Percebi que Amanda estava tímida, mas começamos a conversar e fiz aquele plano lindo com ela sentada nos olhando.

Gosto de fontes de luz maiores e mais afastadas. Quase não uso luz dentro dos ambientes. No banheiro, que fica na casa do sítio, não aparece luz nenhuma. Cobri o Sol com um butterfly enorme na parte de fora.

Em um dos lados, usei uma fonte minha, filtrada. No outro lado, tinha um refletor que vinha lá de longe com uma gelatina, que atravessava um vidro jateado com uma corzinha. Usei ainda um HMI pequeno bem difuso apenas para conseguir um brilho no olho ou algum contraste.

.MAKING OF

 
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O detalhe do olho bem de perto foi filmado por nós com Guta. É uma das cenas mais bonitas do filme. Amei de paixão. Usei uma macro 200mm e um prisma. Tínhamos um refletor que vinha de fora e pedi para o gaffer Alexandre Vaz fazer um funil. Foi a última coisa que filmamos, nos cinco minutos finais, de maneira bem instintiva, na pressa, para não extrapolar o horário de trabalho da equipe, que considero importante sempre respeitar. Eu sempre levo um kit com lentes macros e opções para close ups, além de filtros de aproximação para garantir a possibilidade de aproveitar alguma aberração ótica e filmar de perto com desfoque no que estiver por trás.

A partir de um pedido da cliente, adotamos cores mais pastéis, com uma paleta dessaturada, a partir das tonalidades que ela usa nas calcinhas e produtos. Imagens mais contrastadas não cabiam muito, mas não chega a ser dessaturado. Achei isso tudo bem plausível em relação à marca, que não se vincula a estereótipos pré-definidos. Não era para ser uma cor muito forte e nem muito fraca. A correção de cor foi feita remotamente com Isabela Moura, da Psycho N’Look. Ela foi maravilhosa nos detalhes. A diretora de arte Débora Pascotto também participou dessa etapa junto com a gente. Houve uma minúcia e uma entrega de todo mundo.

Gosto de trabalhar sempre com Alexandre Vaz como gaffer. Nós começamos a trabalhar juntos em 2007 na minissérie “A Pedra do Reino”, de Luiz Fernando Carvalho. Na época, eu era operadora de câmera e foquista. Ele era assistente de elétrica. Hoje em dia, a filha dele está com a gente como assistente. Bárbara Lopes também tem participado muito dos meus trabalhos. Queremos trazer mais diversidade não só para as equipes de câmera, mas também para a elétrica e a maquinária. Se você muda a pessoa que está ao seu lado, você está mudando o mundo. Fiquei muito feliz de termos três mulheres como finalistas na categoria de publicidade do Prêmio ABC. Até hoje, ainda existe resistência de convidar mulheres para fotografar filmes publicitários de carro, por exemplo. 96% dos comerciais ainda são fotografados por homens e é nesse mercado que existe mais dinheiro, com a possibilidade de trabalhar com os melhores e mais caros equipamentos.

Foi uma delícia fazer esse filme. Gostei muito de trabalhar com Zoe e quero repetir. Entendemos nossos lugares de diretora e diretora de fotografia. Ela é muito maravilhosa, extremamente talentosa. Eu amo de paixão o clipe “Vai Render”, que ela dirigiu para Letrux. Sempre trocamos ideias. Os únicos trabalhos que tínhamos feito juntas foram dois filminhos publicados no instagram, teasers do DVD “Noite de Climão”, de Letrux. Filmamos nos bastidores do show, só nós duas.

.MINI BIO

Julia Equi nasceu em 1980 no Rio de Janeiro e está profissionalmente envolvida com a linguagem audiovisual desde 1999. Como diretora de fotografia, atuou nos longas-metragens “Margaret Mee e a Flor da Lua” (2012), “Lucicreide vai pra Marte” (2021) e “Amarração do Amor” (2021) e no premiado curta “Clube do Otimismo” (2018), entre outros filmes. Na TV, assinou a cinematografia de séries como “Quebrando o Tabu” (GNT), “Homens?” (Amazon Prime Video, segunda temporada), “302” e “502” (ambas com o fotógrafo Jorge Bispo no Canal Brasil). Antes, ela fez assistência de câmera em produções como “Cidade Baixa” (2005), “A Pedra do Reino” (2007), “O Incrível Hulk” (2008) e “Maysa” (2009). Fotografou também videoclipes de artistas como Tiê, Silva e Gilberto Gil, além de campanhas publicitárias nacionais e internacionais. Participou ainda do projeto “Fuxico”, do artista Davi Leventhal, apresentado na Plaxall Gallery em Nova York. Foi duas vezes finalista do Prêmio ABC (Associação Brasileira de Cinematografia).

https://vimeo.com/juliaequi

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