CURTA-METRAGEM

ibeji____ibeji

POR THAIS FARIA

A técnica pela técnica é algo que me incomoda. Não acho que, em um filme, por exemplo, a fotografia tenha que se destacar, acho que ela tem que trabalhar em favor da narrativa. Não consigo pensar apenas na técnica, a técnica serve para o sentimento, o símbolo, a imagem.

O curta “Ibeji Ibeji” foi feito entre amigos, com um diretor muito generoso, Victor. Acho que conseguimos realizar um trabalho muito bonito fazendo de um jeito que acreditamos, com muito respeito e cuidado.

Acho que o filme tem um tom de realismo fantástico. Quando pensei no projeto de cor e luz, ou quando vi pela primeira vez o roteiro, foi esse universo que pensei em construir. Tem essa coisa que é mágica, mas que também se aproxima muito da verdade. É o olhar de duas crianças, então abre espaço para uma construção mais fantasiosa ou fantástica. Também tem a questão da religião e da ancestralidade que são temas que funcionam bem nesse tom onírico ou mágico.

AMI____GOS

O diretor Victor Rodrigues é meu amigo desde a faculdade, foi meu calouro. Nós também moramos juntos um tempo, somos bem amigos. A maioria de nós, que fizemos o curta, morávamos juntos na época do filme e alguns ainda moram juntos. Éramos meio que uma família, João Victor Almeida, diretor de arte, Julia Herkenhoff, assistente de direção, Vic, diretor, e Adriana Bassi, que fez a montagem e agora mora na Alemanha. Foi um trabalho da nossa família. Acho que essa convivência e carinho atravessou nosso processo criativo.

Rodamos o filme em 2019. Foram cinco dias de filmagem, mas de pré foi um tempo longo. No processo, sentávamos em casa e íamos conversando, criando, tendo ideia, pensando locação, pensando as coisas. O Victor é bastante metódico, então ele é do tipo que só apresenta as coisas quando está com as ideias encaminhadas, bem diferente de mim, que quando tenho ideias já vou falando. Quando ele apresentou o projeto para nós, o roteiro já estava pronto. Ele já tinha comentado sobre a ideia do filme, mas até então não tinha nos chamado para fazer. A gente sabia que trabalharia no filme, mas não que ocuparíamos cada um a função que ocupamos no final das contas. Conforme o projeto foi se afunilando, ele convidou cada um de nós e todo mundo topou e curtiu esse processo de fazer o filme com todo mundo junto.

LOCA____ÇÃO

Nós visitamos as locações juntos e cada um deu sugestões. Victor foi muito acolhedor no processo todo, ele sabia exatamente o que queria, mas sempre preocupado em deixar que somássemos com nossas impressões e opiniões. A casa que foi escolhida no final das contas estava abandona, com muitos móveis antigos e caros, quebrados e estragando. Teve que ser feito um trabalho de limpeza, de cuidado e pintura, para deixar a casa com a carinha que Victor estava pensando. Um dos lugares que filmamos foi Muriqui, em Niterói. Lá tem várias dessas casas muito antigas, todas muito parecidas, uma área meio rural.

 

 

 

 

 

 

CÂMERA E____LENTES

A gente teve dificuldade porque os lugares eram muito pequenos. Por isso, usamos muito mais lentes abertas, com câmera Black Magic Pro. As lentes eram o jogo completo da Canon, mas usamos mesmo as mais abertas, principalmente a 24mm, por conta dessa limitação do espaço. Nós tivemos três ou quatro locações, mas todas elas eram muito apertadas. Um dos motivos de ter escolhido essa câmera é que, dentro dessas câmeras digitais mais baratas, para projetos de baixo orçamento, acho que essa é uma que traz o dinamic range mais próximo de um filme de negativo. Eu gosto muito dessa característica marcante da filmagem em película e acho impressionante como era lindo esse contraste, em lugares que são difíceis de alcançar com uma câmera digital. As que estão saindo agora, mais recentes, estão incríveis, mas por muito tempo era um contraste que a gente não conseguia fazer com essas câmeras.

COR E____SOMBRAS

No geral, acho que, por ter vindo de uma escola que pensava muito o filme a partir do negativo, apesar de eu mesma não ter filmado muito dessa forma, esse filme foi pensado com uma estética de película e uma forma de fazer assim também. É uma tradição de filmar o mais próximo possível do que vai ser a cena na versão final, mexer muito pouco na pós. Acho que hoje em dia já mudei minha impressão sobre isso, mas no momento em que fiz esse filme estava me balizando muito por aí.

Sempre procuro fazer um trabalho conjunto com a direção de arte, a maquiagem e o figurino. O trabalho de arte de João Victor foi incrível em cada detalhe. Quando entrei na casa, senti que aquele lugar era mágico, ele conseguiu trazer essa atmosfera, esse sentimento. Pensando na cor, tentei trabalhar, para além do realismo fantástico, a presença da roça, do terreiro, da cultura negra. Por conta disso, trabalho com cores e texturas mais cruas, mais escuras, entrando pouco com influências mais modernas.

LUZ____LUNAR

A gente trabalhou com as luzes internas quentinhas e com a luz da lua principalmente, que já é bem azulada e dá aquele tom que vimos no filme. A luz da lua foi simulada, apesar de filmarmos de noite, pois a luz da lua mesmo não chegava a imprimir o suficiente. Usei para essa luz uma Kino Flo 4 em todas as janelas. Havia três janelas na locação, no quarto, na sala e no quarto da avó. Nessas três, colocamos uma Kino Flo difundida com um voal, que é uma herança da UFF (Universidade Federal Fluminense). Eu gosto da textura que o voal dá quando a gente difunde. Então foi isso, para fazer a lua, Kino Flo com temperatura de 5600 kelvin difundida com voal.

 

 

 

 

 

 

 

Algumas imagens são muito escuras e eu optei por não iluminar os personagens frontalmente, a luz foi colocada atrás. Essa foi uma decisão que foi um pouco difícil para o foco, pedi desculpas por isso, mas foi uma escolha com a intenção de trazer a ideia de memória de uma infância que é fragmentada. E não é que ela é sombria, mas por ser fragmentada, ela é escura, distante, talvez inalcançável e imprecisa, mas ela está ali se você olhar. É essa sensação que tentei trazer quando trabalho com essa luz silhuetada e com os rostos muito subexpostos mesmo. É o registro de um outro lugar, meio irreal, uma roça com luz muito baixa, que hoje em dia existe muito pouco, mas que existe na memória de uma criança. Ao mesmo tempo, é um lugar quente, seguro e acolhedor, talvez ainda mais com essa pouca luz.

CENA DE____ABERTURA

A ideia para a cena de abertura era fazer um movimento de Steadicam em um trilho, mas o lugar que íamos filmar era muito baixo e não alcançamos uma visão da frente da casa. Gabriel Cherene, um amigo, operou a steadicam. Com baixíssimo orçamento e muito pouco equipamento disponível, como o piso estava muito irregular, a imagem ficou meio respirando e dando a sensação de câmera na mão, mas Victor achou interessante. Isso foi uma dificuldade, iluminar toda aquela parte da entrada da casa, porque era um espaço muito grande e ali era muito breu. Mas acho que essa iluminação meio precária, mais escura, acabou sendo incorporada na linguagem geral do filme.

CÂMERA EM____MOVIMENTO

Quando li o roteiro do Victor pela primeira vez, a ideia de uma câmera que se movia meio junto aos personagens me veio logo de cara, foi a forma como imaginei a fotografia somando àquela história. O movimento era quase como uma flutuação nesse realismo fantástico, como se um fantasma ou uma entidade percorresse os caminhos dos personagens passando através deles. É como se fosse uma presença, alguém que está observando os acontecimentos, mas não necessariamente alguém material.

RI____TUAL

Na cena do ritual, a câmera como que dança e gira com a mulher. Foi uma cena em que me emocionei muito de estar ali. A música, as pessoas tocando o tambor, foi realmente muito especial, tinha mesmo uma energia que circulava, buscava alguém para incorporar, e chegava na criança. Primeiro tentamos entender o que as pessoas estavam propondo, os atores, os músicos, então o Victor chegou e passou para eles o que queria, deu as instruções do que estava esperando da cena mas também deixou todo mundo muito livre. Aí assistimos ao ensaio deles naquele espaço que era muito pequeno e começamos a desenhar alternativas de como mexer a câmera e ter todo mundo em cena em algum momento, sem perder a sensação da câmera enquanto presença de uma entidade, que está no meio da gira, que está ali incorporando mas não está. Era um lugar bem apertado e usamos a 24 mm de novo até chegar naquela configuração espacial. Apesar dos ensaios, marcando coisas, acho que na hora foi bem freestyle, mas tudo fluiu. Acho que poucas vezes tinha visto algo assim funcionar tão fácil, ainda mais em curta, que normalmente estamos muito atribulados de coisas. No final das contas, acho que  o movimento de câmera casou com os personagens e com a música.

Quando vou fazer um filme, eu sempre peço que o diretor traga a trilha sonora, quando já tem definições. Se não tem esse processo já sendo preparado, que me diga o que está sendo pensado de trilha e referências de músicas para cada cena. Quando vou operar a câmera em determinada cena, coloco o fone tocando a música que é inspiração do diretor para poder tentar trazer esse ritmo para a câmera. Acho que nessa cena teve um pouco disso e Cherene foi brilhante em conseguir trazer esse ritmo, que estava sendo tocado e vivido ali pelos personagens, para o movimento de câmera. Fiquei muito emocionada vendo essa cena.

PONTOS___ DE VISTA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O filme também tem muito pouco plano e contraplano nas cenas de diálogo, quase todas são plano sequência, por essa escolha de fazer da câmera como essa entidade que percorre, que passeia por entre eles. Tinham algumas cenas que saíram que ajudavam a reforçar essa narrativa, como uma cena com reflexo de água no quarto da avó, que trazia um pouco mais dessa coisa mística. Tentamos também manter a câmera na altura do olhar das crianças, então ela ficava um pouco mais baixa que o convencional, nunca muito alta. É algo normal em filme de criança, que casou muito bem na nossa narrativa.

CORRIDA___DAS CRIANÇAS

Filmamos essa cena com o steadicam em uma kombi e a gente dentro com o foco e vendo a exposição. Fomos correndo atrás deles com a porta aberta. Conseguimos um resultado legal, com plano e contraplano. Gabriel Cherene foi muito hábil para tirar a tremida que o carro dá e era uma estrada de terra bastante esburacada.

BRILHO____PRÓPRIO DE NANÃ

A personagem da avó, que é também Nanã, tem um brilho próprio. Foi uma coisa que fizemos na filmagem mesmo. Foi um trabalho conjunto com O figurino, que trouxe materiais com esse brilho na cor da roupa. Tinha missanguinhas que brilhavam.

Colocamos as luzes em cima dela e tudo isso, mais fumaça, deu esse efeito de brilho. Nós trabalhamos o tempo todo basicamente com as mesmas luzes, tínhamos essas Kinos e o fresnel de 1000k.

EMBAIXO___D’ÁGUA

A cena submarina foi filmada com uma GO-PRO número 7. Acho que ficou muito bom, dentro dos limites de equipamento e orçamento que tínhamos. Era pra ter uma coisa meio turva mesmo, que não desse para enxergar muito além, que o espectador ficasse submerso. Para isso, acho que o fato de a imagem de fato ficar bastante turva com a GO-PRO ajudou. A locação era próxima à casa onde estávamos filmando o filme todo. Não sei como acharam aquilo, ficava dentro de um camping muito grande, tinha cavalos, coisas assim, e aquele pedacinho de piscina natural.

O menino está ali, lidando com a morte da avó, mas também entendendo que ela não se foi totalmente, que ela continua nele. É esse lugar de encontro e acesso a ancestralidade dele que tentamos retratar ali. Ele entra no lago e sai da realidade, fica submerso. O azul traz um pouco desse realismo fantástico. Ele não só entrou no rio, entrou em um lugar espiritual de encontro com ele mesmo e com tudo o que a avó significou para si. A água era meio de cachoeira, bem marrom, então houve um trabalho de pós para chegar na cor que a gente queria, trazer o azul. Foi uma das poucas cenas que teve mais intervenção de pós.

FICHA____TÉCNICA

Direção: Victor Rodrigues
Direção de Fotografia: Thais Faria
Operador de Steadicam: Gabriel CherenePrimeiro Assistente de Câmera: Filipe Ferreira
Segundo Assistente de Câmera: Marina Gurgel
Luz: Tainã Miranda
Eletricista: Gabriel Mont’Serrat
Colorista: Hebert Marmo
Direção de Arte: João Victor Almeida
Figurino: Mayra Barroso e João Victor Almeida
Elenco: Valeria Monã, Léa Garcia, Washington Manhold, Monica Nêga, Maikon Manhold.
Fotografia Still: Mayk Bambilla

MINI____BIO

Thais Faria assinou 11 curtas como diretora de fotografia, incluindo “BR3” (2018), de Bruno Ribeiro, e “Cinzas” (2014), de Sandro Lima, além “Ibeji Ibjei” (2022) e vários enquanto estudante de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF). É integrante da APACERJ (Associação Profissional dos Assistentes de Câmera do Rio de Janeiro). Trabalhou por cinco anos como vídeo assist. Nos últimos dois anos, tem trabalhado como assistente de câmera. Nessas funções, trabalhou em séries e longas-metragens como “Teocracia em Vertigem” (2020), “O Livro dos Prazeres” (2020), “Arcanjo Renegado” (2020), “Me Chama de Bruna” (2019), “Refavela 40” (2019) e “Chacrinha” (2017).