Cinematografia Brasileira

CLIPE / GIO

Nebulosa Baby

Por Edvaldo Raw

“Nebulosa Baby” foi algo diferente de tudo o que já fiz até hoje. Entrei no projeto uma semana antes de começarmos a rodar, pois o filme tinha outro diretor que precisou sair por incompatibilidade de agendas. Eu já tinha um relacionamento com Gio por causa de um outro projeto que foi interrompido por conta da pandemia. Dessa vez, ele me chamou meio de surpresa e eu caí de cabeça. Tive algumas reuniões com a equipe de direção criativa, formada pelo próprio Gio, Ava Rocha, Gāthā e Og Cruz. Eles trouxeram o roteiro e todas as ideias, tudo o que já tinham imaginado para o filme e fomos entendendo quais eram as possibilidades. Trabalhamos a partir da perspectiva de que a gente imagina um filme, capta um e edita um outro, então estávamos com a visão de que iríamos modificar o que fosse necessário para que a ideia do roteiro fosse trazida para o mundo da melhor forma possível.

O meu papel como diretor e fotógrafo foi dar uma estrutura e um formato para tudo aquilo. O roteiro já estava decupado em relação aos atos e cenas, mas não detalhava os planos e como tudo seria gravado ou como uma sequência se encaixaria com a outra. Meu trabalho foi ser essa cola e fazer o material ficar mais coeso, com mais sentido como uma obra completa junto com a trilha e a montagem maravilhosa feita por Korontai.

Conexão com as locações

A escolha das locações foi uma surpresa maravilhosa para mim porque a maioria daqueles lugares foram escolhidos pelo próprio Gio e passam por sua história de vida. Filmamos muitas cenas em Jequié e Ipiaú, locais que possuem conexões com a infância e a adolescência dele. Entre os personagens, tem muita gente da família e amigos. O filme é sobre sua trajetória e sobre as pessoas que tiveram importância para ele como artista.

Chegamos em cada cidade para observar quais seriam os melhores horários de luz para filmar cada locação. No dia seguinte, já rodávamos. Foi muito legal conhecer essa parte da Bahia e poder estar ali captando e trazendo meu olhar. Apesar de ser uma história muito pessoal de Gio, ela tem muito a ver com a minha história. As pessoas que filmamos têm muito a ver com as pessoas da minha vida. Foi algo realmente natural e fluiu de maneira muito tranquila.

Preto & Branco

A nossa narrativa é basicamente sobre a busca do personagem por uma resposta, um lugar ou um estado mental. Praticamente 70% do filme é em Preto & Branco para concentrar mais nas expressões, nas texturas e no imagético. No ponto alto, surge um contraste, quando ele finalmente encontra esse estado de paz e tranquilidade, representado pela energia luminosa. A partir daí, a cor e a direção de arte têm um papel grande neste sentido de conseguir separar momentos e trazer uma diferenciação entre o lugar onde você estava e o lugar que você almeja/ onde você chegou. A gente queria mesmo diferenciar esses momentos e criar um espaço entre eles sintetizando toda a caminhada até ali. Antes, o personagem era uma pessoa, depois ele é outra, que vê as coisas de outra forma e enxerga a beleza de forma diferente.

Trabalhei com LUTs (Look Up Tables) que eu mesmo criei no software DaVinci Resolve. No roteiro, já sabíamos quais cenas seriam P&B e coloridas. A ideia final de captação já estava definida desde a pré-produção e foi aplicada na monitoração, interferindo na forma de expor. Os LUTs em Preto & Branco tinham mais contraste e eu já trazia isso para a câmera na hora de captar, para visualizar o mais próximo possível do que seria o material final. Na montagem, Korontai teve alguns insights e trouxe para o colorido algumas cenas que foram filmadas para ser em P&B. Para permitir essa possibilidade de trabalhar as cores na pós da melhor forma, rodei tudo em RAW para ter um range maior. Esse arquivo mais completo traz mais possibilidades, ajudando a manter uma unidade maior.

Raios de Luz

Encontramos uma locação que considero de ouro, uma antiga cisterna desativada, em Jequié. Lá havia buracos no teto que acabam trazendo grandiosos feixes de luz. Nossa equipe era muito reduzida, sem uma pessoa encarregada dos efeitos, por exemplo. Trabalhamos a fumaça com pequenos fogos de artifício e sinalizadores que ajudam a trazer essa atmosfera e formato que buscávamos.

Os feixes que vêm de fora são do sol, é tudo natural. Entendemos qual era o melhor horário do dia e quais eram os melhores ângulos de incidência solar. Usamos também um rebatedor e isopor para remanejar a luz da melhor forma. Mesmo com pouca estrutura, conseguimos utilizar aquele ambiente de maneira muito interessante dentro da nossa estética.

O maior desafio nessa locação foi conseguir manter uma unidade de contraste. Como fotógrafo, gosto de trabalhar as sombras e negativar as cenas, com um contraste bem marcado. Como usamos luz do sol, o punch é maior. O trabalho é conseguir manter tudo equilibrado entre o nível alto e o curto, mas sem exagerar demais ou perder informação quando algo fica muito marcado.

Contraluz

Dentro da minha formação, nessa caminhada que eu venho percorrendo na cinematografia, encontrei no contraluz um formato muito interessante, que sentia não ser muito bem explorado. O contraluz é um efeito clássico, usado desde o início do cinema, mas sinto que é utilizado de forma muito específica, para momentos específicos, de maneira muito forte e marcada.

Em muitos dos meus projetos, trabalho o contraluz como algo pertencente a meus universos. Utilizo muito, principalmente quando eu tenho poucas fontes de luz e isso foi algo presente em minha formação, pois aprendi a fazer luz com poucas fontes. Sempre busquei a melhor impressão e a melhor entrega dentro das possibilidades que temos, sem ficar dependente demais de exigências de equipamentos. Podemos buscar, no próprio set, soluções que realmente combinem com a história e o enredo do projeto.

Sinto que a contraluz performa muito bem, seja sozinha ou com algum complemento. Em “Nebulosa Baby”, uso esse recurso tanto com o posicionamento da luz natural quanto da artificial, para marcar os personagens e dar um volume geral nas cenas.

Lentes e Câmera

Na escolha das lentes e da câmera, levamos em conta a questão orçamentária e as necessidades do projeto. Optamos por uma Black Magic Pocket 6K e duas lentes zoom da Sigma Art, uma 18-35 mm 1.8 e uma 50-100 mm 1.8. Escolhemos esse jogo porque eu precisava de uma certa dinâmica por causa da equipe reduzida.

A zoom facilita na hora de captar as cenas documentais, que são muitas, de forma ágil. Chegamos em uma textura bem interessante. Tanto essa câmera quanto essas lentes possuem características bastante digitais e modernas, só que as formas de filtrar, rodar e trabalhar na pós nos permitem alcançar um meio termo entre o eletrônico e um tratamento mais inspirado no analógico. Acredito que chegamos a uma textura que ficou interessante e única.

Camera Car e Camera Horse

Nas cenas da caçamba do caminhão, trabalhamos com o que costumo chamar de “camera car de baixo orçamento”. Basicamente, tínhamos uma van de apoio com os assentos retirados da parte onde a porta lateral abre. A câmera estava em um tripé, catracada na própria van, bem travada tanto no banco lateral quanto na alça, muito fixa. Para manter o máximo de segurança nessa operação, eu fui catracado também, no banco que sobrou. Andamos por ruas de asfalto, que tinham um chão mais retilíneo e uniforme, para trazer a estabilidade que precisávamos.

Nas cenas com cavalos, optei por operar a câmera também a cavalo. Foi a primeira vez que montei na minha vida. Dei algumas voltas antes para me sentir confiante. Tínhamos dois personagens montados e uma boiada no meio. A forma mais segura, dinâmica e prática para conseguir captar ângulos diferentes era participar junto com eles, montado sozinho no meu próprio cavalo. Foi uma experiência bem interessante, fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Ficou mais orgânico e casou melhor com os movimentos deles.

Meu animal era manso e bem tranquilo. Isso me permitia alternar, de forma muito rápida, movimentos ágeis e planos parados com leve movimento de câmera na mão. Eu gosto muito de tentar ver a cinematografia com outros olhares, pensar e repensar formas de fazer cinema. Quando surgiu a oportunidade de filmar a cavalo, pensei que seria uma boa dinâmica para aquela cena.

Zoom Minimalista

Quando recebi o roteiro, percebi que o filme seria realmente muito fotográfico, no sentido de ter planos bem compostos, que ocupariam certo tempo de tela. Decidi que usaria muito tripé, por causa dos planos parados ou quase sem movimento, e câmera na mão, uma coisa que eu domino e exercitei bastante durante minha caminhada na cinematografia. Baseei o filme inteiro nessas duas estruturas, só que pesando mais para o tripé. Muitos planos são como fotografias por serem composições bem escolhidas.

Os efeitos de zoom minimalistas nos convidam a mergulhar nas imagens de forma sutil. É algo bastante utilizado no cinema, principalmente na década de 1970. São movimentos que trazem sensações e sentimentos mesmo nas cenas sem muita movimentação de mise en scène. Muitos deles foram digitais, feitos na montagem. Sinto que eles proporcionam a sensação de estarmos cada vez mais próximos daqueles assuntos e personagens.

Espelhamentos

Para filmar o personagem de cabeça espelhada, tive que ter cuidados principalmente com os reflexos. Como era uma performance com muito movimento, a pirâmide se movia em vários ângulos. Pedi para a equipe inteira se posicionar atrás de mim, atrás da câmera, para reduzir essa possibilidade de aparecermos. Tentei também utilizar muitos planos de baixo para cima, de forma com que o céu e a parede de pedra fossem os elementos mais refletidos de maneira orgânica e diegética.

O tecido metálico foi uma escolha de Gāthā, a diretora de arte. Meu trabalho era escolher uma luz intensa e um horário do dia que trouxessem contraste para destacar o brilho do material sem estourar e sem ficar não-estético.

Efeitos de Luz

Na cena específica da luz giratória, a ideia era deixar as quatro personagens distribuídas em camadas. Uma estava em primeiro plano, outra em segundo, outra em terceiro. A iluminação bailava entre elas. A ideia era filmar à noite com apenas uma fonte de luz. Como não tínhamos gerador, utilizamos um Aputure 300d com baterias V-Mount. Enquanto posicionávamos as atrizes, tive a ideia de pedir para o assistente TT Porto girar a luz em seu próprio eixo. Quando ele fez o movimento surgiu aquele efeito que está no filme, com a alternância de iluminação entre as personagens.

Foi uma estética que surgiu a partir de uma falta que a gente utilizou como potência. Independente da quantidade de dinheiro, tento trazer isso para os projetos, quebrar a cabeça e pensar novas formas de captar as cenas. Ter essa visão foi essencial para meu trabalho evoluir.

Fizemos a cena das faíscas em contraluz de duas formas. Na primeira, que aparece em destaque durante mais tempo, usamos aqueles mini vulcões de São João, fogos de artifício inofensivos usados por crianças. Buscamos o melhor horário da Hora Mágica, quando já não havia luz direta do sol, com o céu bem iluminado e colorido. Posicionamos o vulcão atrás da personagem e fizemos movimentações que trouxeram mais organicidade pra cena.

Em outro momento, que aparece rapidamente como um flash, utilizamos lã de aço amarrada a um pedaço de madeira, tocamos fogo e giramos com bastante intensidade. Dessa forma ela gera faíscas, pequenos fragmentos que causam aquele efeito.

Na cena da silhueta que se move na pedra, começamos a diária de manhã bem cedinho. Primeiro fizemos as imagens de luz mais branda. Depois, quando o sol surgiu, a luz ficou mais dura e vimos essa sombra em movimento, projetada naquele paredão rochoso cheio de cortes verticais bem definidos. Achamos que valeria aproveitar para nos ajudar a contar a história também daquela forma.

Intervenções Digitais

As cenas com intervenção de computação gráfica foram pensadas desde antes de irmos para o set. Filmamos esses planos no tripé. Para facilitar, captamos também alguns plates para usar na composição. Foi necessário ter bastante atenção para favorecer o trabalho da pós-produção. A questão da refração da luz foi bastante trabalhada antes, utilizando uma fonte de luz portátil pendurada por um fio de nylon que simulava a movimentação da esfera de luz, para que, assim, a iluminação trazida pela pós fizesse sentido e tudo ficasse o mais crível e realista possível.

Créditos Finais

As cenas da confraternização foram bem interessantes de produzir. Gravamos em uma comunidade de Salvador, em um barzinho, onde trabalhamos bastante com a luz diegética, tendo pontos de luz que fazem parte da cena. Mais uma vez, usamos o contraluz para trazer volume. Como era uma locação pequena, precisávamos trabalhar bem para a luz não se espalhar demais dando uma sensação de uma única camada, mas sem deixar o ambiente também muito teatral e forçado. O desafio foi achar o meio termo a partir das luzes diegéticas e alguns LEDs.

Disponibilizar o filme em 2K no Youtube é uma escolha que eu tenho feito já há alguns anos. Percebi que o encoder do Youtube não trabalha bem com 1080p. Como eu faço a correção de cor de muitos dos meus filmes, já aconteceu algumas vezes de percebermos diferenças de contraste e nitidez, com perdas de informação nessa plataforma em específico. Na resolução de 2K, a reprodução do arquivo fica mais preservada, mas sem o exagero na nitidez do 4K ou do 6K. É suficiente para manter as informações das baixas e para valorizar tudo o que a gente precisa.

Como fotógrafo, “Nebulosa Baby” foi um grande exercicio de tudo que já vinha praticando nos últimos anos na cinematografia, buscando uma unidade entre cenas ficcionais e documentais e trazendo cada vez mais uma assinatura para minha estética. Como diretor, foi uma experiência de entender novos formatos e me aprofundar nas complexidades de se trabalhar um roteiro de forma a pensar soluções críveis e criativas.

MINI BIO

edvaldoraw.com

Soteropolitano, Edvaldo Raw é diretor, fotógrafo, colorista e roteirista. Atualmente integra o cast de diretores da agência internacional Iconoclast. Dirigiu e fotografou videoclipes de artistas como Larissa Luz, Afrocidade, Gio, Rincon Sapiência, Luedji Luna, ÀTTØØXXÁ, Don L, Lexa, Filipe Ret, Silva, Celo Dut, Nara Couto, MC Soffia, Diamante, Virus, Gabz, Nêssa e Cronista do Morro (premiado no Music Video Festival), entre outros. Dirigiu e fotografou o vídeo oficial de divulgação do podcast Mano a Mano, apresentado pelo cantor Mano Brown. Assinou a direção de fotografia da transmissão oficial do festival Afropunk Bahia 2021. Na publicidade, trabalhou em comerciais de marcas como Johnnie Walker, Spotify, Google, Apple Music e Nubank. Aos 20 anos de idade, foi diretor de fotografia do curta-metragem “Náufraga”, de Juh Almeida, premiado no festival Panorama Coisa de Cinema em 2018.

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